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domingo, 7 de janeiro de 2024

O 'HOMEM DE DEZ MIL ANOS' # 4

E foi que o 'Homem de Dez Mil Anos', nessas suas andanças, chegou num caminho que se bifurcava... Logo atrás um séquito o seguia. Detiveram-se à espera que ele lhes indicasse uma direção.
- É chegado o momento de vocês escolherem... O caminho não é uma linha reta, porventura fosse, adviriam outras circunstâncias seja na margem ou no percurso. - Por alguns instantes pareceram desorientados.
- Põe-te a andar simplesmente pela liberdade da razão. Sem objetivos, mas numa direção definida. Para fora de ti mesmo. Junto de si... Perder-se deste eu que se perdeu. Querer estar fora de si. Vir ao mundo interior. - Uma balbúrdia de vozes confusas questionava.
- Fora das cidades, além do bem e do mal, trilhando sua jornada. Pronto para voar. O horizonte límpido nos olhos... A uma certa distância enxerga-se melhor. Caminhar terras cujos limites ninguém ainda mediu, inexploradas estão ainda as veredas do homem. - Do qual o semi-deus sentia-se muito íntimo pelas aflições.
- Não raramente fugimos daquilo que os seres humanos em geral fogem. Todavia, buscando o que eles vulgarmente anseiam. Uma coisa é fugir... Outra é procurar.
Diante dos olhos as incertezas do destino.
- Filhos da dor... Mal se dão conta de quanto a dor acompanha nossas vidas. Seja no nascimento, na perda, na falta... Na morte. Na solidão, neste prosseguir... Veja, a solidão humana interior pode ser um labirinto ou uma jazida de ouro. Assim mudando de rumo dou continuidade a tragédia... Conhece a ti mesmo, é o que propõe o caminho.
Sequer precisava estar com eles para guiá-los. 
- Tudo o que almejo é pertencer a mim mesmo... Não é de cadáveres que necessito como companheiros de viagem. Nem peço que me sigam, senão pela vontade de seguirem a si próprios. E digo mais, desgarra-te do rebanho chamado sociedade. Rejeita estar oculto na falsa segurança do teu meio... Não sou como o pastor que teima em apascentar vossos apetites longe dos perigos. Pois nem sempre a verdade é feita de belas palavras. Como não é verdejante o pasto que oferece o mundo...
Enquanto os demais se decidiam, o 'Homem de Dez Mil Anos' desapareceu adiante no caminho.  

domingo, 24 de dezembro de 2023

FELIZ NATAL PRA TODOS =====

Fausto Bonavides era um sujeito exemplar. Decente como se costuma dizer. Ia à missa no domingo, abnegado comerciante, julgava-se "homem de bem". Um cidadão sem máculas aparentes. Desse modo conseguiu construir sua fortuna particular, que em ocasiões como esta o deixava cheio de ocupações com as compras. Afinal não poderia esquecer, de forma alguma, os presentes natalinos da família. Uma lembrancinha que fosse!... Até mesmo o cachorro merecia atenção especial. Este ano mais do que nunca. O animal impedira que um gatuno invadisse o quintal da mansão, já vilipendiada pelos impostos e taxas. Fizera jus ao ditado tão popular de que o cão continuava sendo o fiel amigo do homem. Além, é claro, de uma magnífica coleira de prata com nome gravado.
Havia também outros agrados à esposa, tão leal quanto o cachorro. Semelhança esta por vezes perturbadora. No comportamento dela ao receber seus afagos, na maneira que se portava ao vê-lo chegar. Ainda para os filhos, já nem tão fiéis quão a mulher e o bicho.
"Ora, que se podia fazer? Não consigo odiar aqueles desalmados... Quanto mais no Natal!" - Pensou consigo, enquanto verificava o volume de pacotes. Não esquecera ninguém...
Pelos corredores do shopping lá ia ele. Como se a humanidade houvesse dado uma trégua nas mazelas do cotidiano. Sobretudo, naqueles dias... Logo mais iria à igreja ouvir o sermão da missa de Natal e o padre confirmaria este seu sentimento...
"Cristo veio ao mundo trazer boas-novas. Nos ensinar a compaixão, caridade... Palavras do Senhor!" - Aquelas severas admoestações. - "Não acumules para si outros tesouros aqui na terra. Onde a ferrugem corrói e os ladrões roubam! Não ponha sua esperança na riqueza incerta, mas naquele que lhe dá o usufruto..." - Quanta razão havia em suas parábolas... Mas também, difícil de praticar. Mantinha a certeza de que dera o melhor de si. Só depois de saciado o espírito voltaria para casa. Onde todos unidos ceariam festivamente o gordo e suculento peru preparado pela esposa. Pedaços, molhos, bocados digeridos. Embora preferisse não pensar na fome naquele momento, nada de beliscar. No Natal fazia questão de sentar-se à mesa farta.
Enfim era isso. Esta a época para projetar dias melhores. Ele mesmo teve um árduo começo. Quantos natais se passaram até receber seu primeiro presente? E não se pense que ganhou um carrinho. Foi uma gravata! Portanto, muito tempo depois. De lá para cá as bem-aventuranças sucederam-se. A ponto dele atrapalhar a turba nos corredores carregado de presentes. Bem como aumentar sua coleção de gravatas... Aliás, não havia modo de ser pego pela melancolia que alguns insistem em atribuir e que lhes ocorre próximo ao final de mais um ano. Por todos os lados são canções, luzes cintilantes, enfeites coloridos, pessoas entusiasmadas. Há tanta alegria nos lábios que é impossível não crer que a felicidade de fato exista.
"Basta olhar no rosto de cada um. Pode-se não querer sentir a felicidade, enjeitá-la. Mas, que ela existe... Disso não tenho dúvidas!" - Entre descontos e outras promoções, o saldo do contentamento.
- Não é sublime a imagem do menino na manjedoura? Por que será, Deus escolheu fazer nascer seu filho entre os animais? Sem luxo algum... - Disse uma velhinha com ar apiedado, abraçada num maço de lírios campestres. Reparando que Fausto admirava-se em olhar o presépio na vitrine.
- É... Mistério! - Tentativa vã explicar a evidência. - E assim sendo... Nasceu com tão pouco para dar tanto, e nada receber. - Repetiu a comum constatação. Então seguiu de novo equilibrando o monte de caixas. Dali a pouco encontraria a família e juntos desejariam um feliz Natal pra todos. Mais que depressa seria aliviado do peso de tantos embrulhos... Que desse crédito ao genro neste dia. Relevar se a nora implicasse movida pela eterna mesquinhez. Perdoar as dívidas pelos empréstimos. Havia oferta mais preciosa que o tesouro dos nossos corações? Nada estragaria a véspera à espera do Natal. Tão noite feliz. Só de pensar naquele momento sentiu os olhos umidecerem. Seu sacrifício em manter a família reunida compensado...
Do lado de fora no estacionamento parecia mais tranquilo. Ouvia-se apenas uma cantiga natalina vinda do shopping, e ele se preparava para ligar o carro. Junto à janela surgiu um menino. Sujo, os pés descalços. Assustou-se com aquela aparição. Deu com a chave na partida, o motor engasgou... A vida nunca seria exatamente o paraíso! Todos tinham problemas, as pessoas cresciam desordenadas. Fausto estancara atônito. Aqueles olhos compadecidos do garoto em cima dele e o seu profundo silêncio, a dizer mais que mil palavras foram suficientes para lhe constranger a alma...
- Vai pra casa, rapaz... Já é tarde. - Todavia, o moleque permaneceu parado como se não entendesse seu conselho. Desconfiou que o menino estava era atrás de alguns trocados. Por uns instantes êxitou reparando no pivete ali... Imóvel e calado.
"Na certa, é uma esmola que ele quer... Vou dar. Parece tão faminto o infeliz!" - Jesus também dissera aquilo que inspiraria o monsenhor.
"- Vosso ouro e prata estão enferrujadas e a corrosão deles vai servir de testemunho contra vós e devorar vossas carnes, como fogo!... Amai-vos uns aos outros..." - Decidido sacou do bolso uma moeda, que o pirralho agarrou num salto.
- Pegue... Mas não vá gastar com besteira!
Lentamente desviou o carro seguindo para a alameda. Agora se sentia reconfortado. Adiante uma grande árvore enfeitada reluzia... Maior fortuna teria ele, pois era o herdeiro legítimo do reino dos céus.

                                                                                                Natal, 1997.

terça-feira, 2 de maio de 2023

EPÍLOGO MAÇOM ===========

Os raios de sol espargiam envolvendo o quarto por entre a névoa olorosa de mirra e kuphi... Contidos soluços reverberavam no ambiente. Eram as lágrimas de prata da viúva lamentosa, seus arrimos desorientados à sua cabeceira, enquanto ele de olhos arrebatados no inefável inutilmente aguardava socorro.
Nos arredores da clínica ouviu-se o canto longínquo de um galo. O dia encimava na abóbada aclarando sua consciência.
"Deus, meu bem e direito..." - Mais em sua mente que nos lábios repercutia o dístico de um emblema da magna ordem que lhe cimentara a trajetória.
Sabia estar conectado a uma série de aparelhos. Eletrodos ligados ao peito desnudo do lado esquerdo, monitorando seu coração.
O soro gotejava um orvalho pálido... Estranhou que não movimentasse as pernas, apenas o pensamento gravitando no coma. Privado delas como poderia transitar por si mesmo com liberdade? De que valeria inválido, sem poder marchar para transpor o pórtico glorioso do progresso?
"Que valor tem um corpo incompleto, sem os pés?... As passadas incertas." - Ouviu rumores dos que saíam, seguido do arrastar de solas de sapatos. Por qual razão fechavam a porta? Colocaram-no a sós no quarto com suas reflexões. Numa árdua jornada nas profundezas de si mesmo. Deixaram-no batendo à porta da consciência pancadas desordenadas de desespero...
Embora Deus pertencesse a todos tinha seus escolhidos. E da pedra bruta ele se fez. Tosca matéria polida. Peleja da vontade sobre o desejo, pois a semente germina da terra por seu próprio esforço para renascer. Ainda que fosse semeada em solo estéril fincou raiz na rocha e deu frutos.
- Só não é escravo, quem é Senhor! - Para isso teria que estar acima, exercendo o poder. Semelhantes máximas abalavam as fraternidades. Jamais se prostrou a quem quer que fosse. Venerável Senhor do esquadro, compasso e prumo construiu dadivosa fortuna. Invejável cidadão fez correr seu prestígio em redor.
- O querer para si não é o querer para outros... - Sentenciava aos irmãos. Prevaleceu sobre servos e capatazes para se tornar obreiro da verdade... Haverá de almejar a pureza aquilo que é impuro?
Contra seus adversários empunhou o bastão e a espada. A mesma que teve apoiada em seu coração temerário, aguilhão da própria consciência. Foi terrível para os opositores submetendo-os debaixo dos pés. Fez pairar sobre suas cabeças o anátema dos seus propósitos. Imponente como um leão na selva citadina, girando a engrenagem perversa da sociedade.
Assim foi legislador absoluto. Dispensando júbilos ou trevas a si próprio, considerando-se o decretador de suas recompensas e castigos. Seguiu na seara contrária do mundo virado às avessas, edificando templos aos vícios e cavou neles orgulho e ostentação. Emporcalhadas tinha as mãos por terríveis decretos.
Sobremaneira era capaz de vis convencimentos e persuasão. Descobriu que lutar pela boa ou má causa segura era a vitória, desde que desfechasse o derradeiro golpe e neutralizasse o revide. Acobertava seus crimes contra ilustres com razões políticas e passionais. Conforme os deveres para consigo, segundo os excelsos ensinamentos. Sim, sob o golpe aprovador do malhete dos Arquitetos de Hiram, enquanto lhes convinha e alegravam-se. Pois, nenhum báculo opôs entre as serpentes para apaziguá-las de suas contendas. Rompendo o elo da união do tríplice abraço.
Artífice de leviana caridade nas colunas sociais permitiu-se macular pelas nódoas da vaidade tola. Pendeu-se-lhe o vértice da estrela flamígera na alfaia. Fizeram-no ver o cálice transbordante na mensura do mal. Abateu-se sobre ele os tempos catastróficos do mundo profano. Escarneceram os inlutos do destruidor. Tornou-se da ensinança o próprio símbolo...
"Por que me tiram a venda dos olhos?..." - Desvaneceu-se as aparências. Por baixo da pele do rosto vicejava sua caveira descarnada. O espírito onde hospedara-se a doença. Certeza do seu epílogo não muito além. Resto do que é ser uma criatura humana, o esqueleto de cujo corpo a alma inquilina anseia exalar o derradeiro suspiro.
Agora que sua mente tudo testificara, a ampulheta extravasa os últimos grãos. Rompeu-se a fronteira do recinto que lhe acolhia dos perdidos. Que façam a abóboda de aço com as espadas antes de cerrar-se o tampo da esquife. Redimido estava do infortúnio. Não do caruncho do esquecimento, merecido salário.
O opúsculo traz o fétido perfume do definhar da florescência moral. Talvez lhe presenteiem com ramos de acácia... Este dia perdeu-se para ele.
"O berço e a sepultura são, pois, teus limites... Faz o teu testamento e despede-te do mundo dos vivos!" - Parecia uma voz segredar-lhe aos ouvidos a sentença funérea.
Entretanto, tudo isso morre em sagrado sigilo consigo. Donde escapam palavras...
- Gememos! Gememos... Gememos!

                                                                      Maio/2006...

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

O 'HOMEM DE DEZ MIL ANOS' # 3



Passava o 'Homem de Dez Mil Anos' ao largo de um vinhedo. A terra fértil a reafirmar a permanência humana na certeza do seu ideário.
"Pode o homem temer o inverno por suas dificuldades. Mas virá a primavera, renovação da vida e no plantio da luz do verão que se germina a esperança do renascimento outonal."
Atraído pelo aroma e a visão exuberante das videiras sentiu desejo de comer algumas uvas.
Pendurada numa cerca de arame farpado havia uma placa que indicava acesso restrito: "Propriedade Particular"... Mais adiante deparou com um senhor que vendia cachos maduros a um preço exorbitante.
- Como queres que eu coma dessas uvas, se cobras tão caro?
- Se queres comer, entra. Trabalha e darei justo quinhão para teu regalo.
- E somente assim?...
- Para que o vinhedo chegasse a produzir, investi dinheiro que tomei ao banco. Contratei pessoas que lavraram a terra... Queres de graça?
- Oh, sim... Comércio. Uma tapeação mútua entre banqueiros, mercadores, agricultores, no salve-se quem puder.
- São as regras...
- Reputas a tua inteligência, aquilo que faz parte da tua insensatez.
- É o preço da vida.
- Toda essa orquestração econômica visa apenas auxiliar a classe rica nos seus apuros financeiros.
- Se quiser as uvas é só pagar.
- Dizes ser justo, e toma por teu o que pertence a todos. Usas da natureza, de onde tira riquezas, como propriedade privada. Contudo, para aqueles que tem fome não os pode saciar.
- Mas se foi dada a mim, pertence-me!
- Por quais distinções a natureza deu título de posse aquele, e não a outro indivíduo?
- Está sem dinheiro?... Então pare com essa amolação.
- Nem tudo silencia como a videira que vives a podar. Deixe... Mas não é por desdém, acaso estivessem verdes. Não farei como a raposa que tendo fugido extraviou-se de volta para a jaula ao abocanhar o engodo. E nós sabemos como é difícil escapar.
Nisso tomou outro rumo e tendo se distraído o comerciante, o 'Homem de Dez Mil Anos' trepou num mourão de cerca, daí colheu alguns cachos que pendiam fora dela.
- A rama poderia estar dentro, entretanto o cacho está fora... - Murmurou entredentes, enquanto a fruta sumarenta rompia-se em sua boca.
    

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

EM TUDO GRAVIDADE =======


Conhecíamos nossas diferenças
Mas uma atração irresistível
Nossos corpos ardentes no espaço
Nos fez contar com a sorte
Que revelam os astros.
Verdades insustentáveis
A taça que cai ao chão
Meu coração despedaçado
O tropeço no caminho
Um mal passo neste amor
Andar à beira do buraco
Sem horizonte singular
Acabou-se o mundo.

domingo, 18 de abril de 2021

O 'HOMEM DE DEZ MIL ANOS' # 2

Certa ocasião o 'Homem de Dez Mil Anos' aportou numa pequena cidade. Nesse dia disputava-se um clássico de futebol entre a agremiação local e o time da cidade vizinha. Para o campo acorriam centenas de torcedores com suas bandeiras, instrumentos de algazarra pra sustentar o coro da arquibancada.
Chegando ao estádio sentou num espaço que separava as duas torcidas rivais, onde se xingavam mutuamente antes do jogo começar. Ao adentrarem o gramado os times foram recebidos pelo fumacê nas cores dos clubes, muitos gritos de guerra e espocar de rojões. Depois do "cara ou coroa", o árbitro deu início à partida...
Corre pra lá, corre pra cá. Algumas botinadas, mais ofensivo o esquema tático do rival encaixou... Aos quinze minutos do primeiro-tempo o escrete visitante abriu o placar. A torcida adversária foi à loucura. Empolgado com o golaço que fizera o craque meia-esquerda, ao driblar o zagueiro daí chutar pro  fundo da rede, o 'Homem de Dez Mil Anos' sacudiu pra valer na arquibancada... Nisso o adversário armou a retranca passando a se defender, à espera do contra-ataque. Obrigando seu goleiro fazer grandes defesas.
No intervalo, os jogadores ameaçaram sair aos tapas. Aqueles torcedores que não foram mijar, tiravam sarro uns dos outros, cantorias, provocações diversas. Embora tenso, aquilo estava aquém das manifestações que vira entre os chineses, 2.500 anos antes de Cristo, quando os soldados se divertiam num jogo animado chutando o crânio de seus inimigos decapitados. Ou como assistira épocas atrás durante jornada à Civilização Maia, em que dividiam dois coletivos, os quais deveriam acertar com uma bola a meta na forma de aro. Sendo esta disputa tão ferrenha, que o líder do time perdedor era punido com a morte... Então recuperadas nos vestiários, as equipes retornaram e deu-se  continuidade à peleja...
O clube anfitrião voltou melhor pro segundo-tempo. Uma torcedora nervosa roía as unhas, tanto quanto berrava o nome do ídolo querido. Os  dois técnicos à beira do gramado davam orientações táticas gesticulando, além de perturbar o Bandeirinha quando das marcações. Logo aos cinco minutos uma bola na trave adversária acendeu a equipe da casa. E após muita pressão junto à grande área, perto dos vinte e três da etapa complementar, batendo falta precisa na forquilha (lá onde a coruja dorme), o Lateral-direito empatou o dérbi interiorano. Tomado pela emoção o andarilho milenar vibrou com o gol. Tanto tempo sem ir ao estádio, ele esquecera quanto surpreendente poderia ser uma partida de futebol... Alguns torcedores, de ambos os lados, estranharam tal atitude infiel. O camarada devia estar maluco! Que camisa veste, qual time torce?
Alguns impedimentos, o "Uh!" de frustração dos torcedores pelo quase gol, lances perdidos pra virar a partida, chutes pela linha de fundo... E o jogo terminou empatado. Radiante o 'Homem de Dez Mil Anos' comemorava. Um torcedor não se conteve, exigiu explicações. Aquilo era "virar casaca" demais, sendo que ninguém ganhara.
- Como não! - Respondeu ele. - Fico feliz porque não havendo vencedor, nem vencido podemos todos festejar duplamente.

HORROR NA PEQUENA VILA =====

Desde as primeiras horas da manhã, um vento incessante que esquiva invisível entre os prédios adentrava a pequena vila residencial, varrendo as calçadas sem sapatos, o calçamento de pedras das ruas. Agitava-se, espargia umas folhas mortas de árvores, corria rasteiro e rodopiava em redemoinhos numa esquina. Plaquetas de comércio dependuradas rangiam sacudidas pelo vento... Embora a luz do sol dourasse os paralelepípedos, o calor se dissipava soprado pela ventarola. Casas de janelas cerradas, outras o agitar de cortinas. Varais e suas peças de roupas dependuradas, feito partes de corpos balançantes em sacadas. Só a presença do envolto ar movediço...
O seu penteado não resistira aquela agitação toda. Iria apresentar-se às pessoas como um espantalho. Vivia ao tempero dos hormônios. Seus seios oprimidos pelo sutiã sob a camisa social de mangas arregaçadas. As ancas justas dentro da calça. Não que fosse feia propriamente, pouco despertasse o interesse verdadeiro dos homens. As faces róseas salpicadas de sardas graciosas.
A semana praticamente passara e fizera poucas vendas, pretendia melhorar a comissão. Ler educa reconheciam alguns clientes endinheirados, mas não tinham apego. Quando muito queriam o espaço vago da estante preenchido. Não era especialista em livros, vendia aqueles demonstrados no catálogo da editora. Nem poderia se considerar uma leitora, aceitou o trabalho dada a necessidade. Gostava de folhear revistas de fofocas sobre famosos, idílicos romances de Bárbara Cartland antes de dormir...
Duma janela alguém a viu parar à beira da sarjeta. Mirou o quarteirão avaliando as residências. Qual favorece-lhe fazer dinheiro? Motivar o otimismo de dias melhores... Diante dela em tons claros de marrons um chalé, ajardinado à frente tinha a fonte do chafariz seca. Um anão de jardim sorria, o sapo de pedra aguardava a água. À direita da mureta provida ao longo do quintal de ornamentos em ferro, o portão da garagem cujo vitrô na lateral deixava ver um Corcel azul metálico estacionado. O férreo portão estilizado não oferecia resistência maior... Nenhum cão de guarda surpreso apareceu latindo. Bastava seguir o caminho de lajotões avermelhados até a porta de entrada, sob um alpendre longitudinal que servia para receber visitas... Tomou fôlego. Não descarte a oportunidade! Cada porta reserva-lhe uma surpresa. Pressionou o botão da campainha ding-dong, logo abaixo do número 696... Parecia demorar... Ninguém em casa. Devia tocar de novo?... Um indivíduo abriu a portinhola diminuta deixando-se notar. Então informou ser vendedora de livros. Talvez não tivesse interesse no momento, muitas contas a pagar, resmungou a voz.
- Veja... - Insistiu abrindo o catálogo. - Temos coleções ótimas. Nós também dividimos em parcelas o pagamento.
O homem saiu um pouco. Tinha média estatura, aparentava meia-idade e mantinha o porte físico. Ela mostrou uma credencial com seu nome, emendou falar da qualidade das edições. Mas o vento ainda insistia inconveniente importunar as coisas... Dissera um nome, mas este escapou-lhe aos ouvidos. Não tinha feições rudes por trás dos emoldurados óculos pretos, respondia com voz branda, gestos comedidos. Sugeriu que entrassem para melhor conversar...
- Tenho mesmo uma biblioteca básica aqui, com coisas de meu interesse. - Apontou uma coleção de livros suspensa na parede. Observadora pôde notar duas enciclopédias de cores distintas, grossos tomos, livros de capa dura esverdeados, em tons de vinho, sobre anatomia, exoterismo, medicina, trabalhos manuais,  perfilados e sobrepostos, títulos em letras douradas, com autores que ela desconhecia. Leu de relance: Sêneca, Marquês de Sade (decerto conta algo sobre a nobreza), Crowley. - ...Inclusive esta indispensável Bíblia Sagrada. - A qual o homem reverenciou com gesto respeitoso apertando contra o peito. - ...Tive uma severa criação religiosa de minha mãe, entende. Eu mal podia brincar do lado de fora. Venha... - Convidou-a sentar-se no sofá, entre ambos um móvel de centro, onde colocou a sacola que trazia a tiracolo com o mostruário de algumas coleções. A princípio ficou receosa entrara sozinha na casa de um desconhecido. Reparou dependurados num mancebo, bolsa e chapéu feminino.
- O senhor tem esposa?...
- Você perguntou por causa dos acessórios de mulher ali... São de minha irmã. Daqui a pouco ela chega.
- Talvez eu pudesse indicar nosso livro de receitas culinárias ou jardinagem.
- Fique tranquila, já recebi outras vezes revendedoras de cosméticos, vendedores de planos de seguros, enfim... - Uma janela batia incomodamente. - Se importa deu fechá-la? - A moça assentiu. - O dia está bastante incomum...
- Creio que nossa coleção de Mestres da Pintura vai agradar o senhor. As reproduções estão perfeitas, o tipo de papel especial, formato horizontal da edição... - Estendeu-lhe o livro. Fez assim sua primeira cartada para a venda.
Examinou com cuidado a capa firme. Deteve-se ante o frontispício luxuosamente ornamentado.
- Aceita beber algo? - Perguntou de repente.
- Não sei...
- Você está com pressa?...
- Escolha à vontade, por favor.
- Vou trazer suco para nós dois. - Saiu. Olhou ela em volta o ambiente. Calmaria estranha. Não estava sujo, impressiona o aspecto lúgubre da casa, como se vivesse nas sombras. Não quis parecer indelicada e recusar a bebida, ouvira histórias escabrosas. Sentiu-se arrependida em aceitar... Da cozinha o indivíduo procura manter certa interlocução. Voltou a citar a irmã pela demora, acompanhado dos sons de armário sendo aberto, porta de geladeira, puxar de gavetas, vidro retinindo de copos e jarra. Enquanto encetava conversa, algo dentro dele conspira. Mais fácil que atrair prostitutas, era um passarinho distraído que caía numa arapuca, não convinha assustá-la... Embora pudesse deixá-la ir antes que desconfie... Ou quem sabe ter uma namorada. Trocar confidências, que essa fosse mais compreensiva. Mulheres eram o seu problema!... Fez parecer tudo muito natural. Sorrateiro pegou um frasco diminuto escondido numa gaveta, esguichou uma solução de sonífero no copo que seria dela. Preferia atordoar a vítima a dar-lhe um murro para desmaiar. Arrumou a bandeja e retornou à sala.
- Aqui está!... Nem demorei. Trouxe o açucareiro para você mesma adoçar o seu. - Daí primeiro colherou açúcar para si e bebeu. Ansiosa logo o acompanharia com goles esparsos, um tanto a contra-gosto dissimulado.
- Pode ver, são comentadas por especialistas...
O livro apoiado assim nos joelhos folheava as reproduções de pinturas famosas: Hugo van der Goes, Caravaggio, Hieronymus Bosch, cenários delirantes em sua imaginação. Um ser cruel dentro dele escondia-se: "Ela tem que morrer!", algo insistia nele. Levantou os olhos das figuras em direção à vendedora irrequieta.
- Bem,  agora só falam que a computação vai permitir armazenar livros inteiros para consulta. Nisso que chamam de web, quadros  em imagens virtuais... Sabe, eu trabalho na limpeza pública. Já fui coletor, agora dirijo o caminhão do lixo. Não recebo muito... Daqui algumas horas inicia meu turno... Você está sentindo alguma coisa?
Ainda que forçasse a atenção, não conseguia permanecer desperta. A cada piscada de olhos mergulhava num sono irresistível. Ergueu-se e intentou dois passos cambaleantes...
- Oh, meu Deus!... - Enregelou-se o corpo até o sono profundo.
- Eu cuido de você.
Ao recobrar os sentidos descerrou as pálpebras pesadas. Achou ocorrer outras vezes. Como se visse em flashes de imagens distorcidas. Havia gritos incompreensíveis. Aquele vulto obsessor. Pareceu que sonhara com o estranho voraz a possuí-la... (!?) Quis se levantar, mas dada a dificuldade percebeu ter sido presa sobre uma bancada. Um conjunto de algemas num dos pulsos e tornozelo, as palmas das mãos atada com grudenta fita adesiva... Estava fraca. Tinha a boca ferida duma mordaça. Reparou estar despida, o corpo coberto de hematomas, lanhos de chicote, a pélvis dolorida... Constatou tendo o olhar aterrorizado, as partes íntimas pegajosas de sêmen e sangue. Derribado no tampo um rijo strap-on, junto duma taça de drink... Soltou um grito sufocado e esperneou a atingir os odiados objetos que caíram ao chão.
- ...Seja bem comportada, entendeu! - Retornou apressado ao porão. Olhava-o espantada vestido num robe. Oprimiu-a com um tapa e injetou entre a boca cerrada a solução sonífera numa seringa, obrigando engolir. Vencida não conseguia forças, sem manter a consciência.
Abaixo da bancada havia um bojudo frasco cheio de sangue, pois a moça já doara milagrosos dois litros, com o qual preparava estonteantes bloody maries. Dispunha desses apetrechos medonhos aprendidos, alguns feitos a partir dos livros.
Não imobilizava sua vítima totalmente sentia prazer em observá-la resistir, dominar sua contrariedade, as súplicas chorosas, o grito de dor parado no ar que logo desaba. Permitia-lhe movimentá-la, tanto como usurpar o corpo. Despiu a vestimenta e bebia o drink pronto. Tocou-a alisando rude a carne doída, que ainda reagiu com repugnância. Apreciava o cheiro da pele, seu calor latente, o sabor da transpiração, o tremor dos músculos tesos, experimentar sua consistência à mordidas.
- Você quer que eu faça seus gostos... - Repetia delirante entorpecido pela sonoridade dos gemidos aviltados, a canibalizar aquelas tetas desejáveis, mastigar o tufo relvado dos pêlos pubianos. Abriu-lhe a vulva movimentando a sebosa língua serpentina, sorveu guloso a escancarar os sanguinolentos lábios vaginais. Aparta abrindo as coxas como querer entrar de volta ao útero.
Seu pinto cresceu o mais que podia, não era assim tão bem dotado, os testículos dependurados no escroto flácido. Queria entrar dentro por todos os orifícios atingindo sua alma. Trepou na bancada de sevícias, apavorada fez encolher-se soluçante, o tampo tingido do mosaico de nódoas, insistiu se debater débil. Puxou-a decidido por trás, que esboçava alguma reação, o rosto colado à superfície nojenta. Afasta as carnudas nádegas e penetra-lhe firme no ânus róseo, nisso estocava sadicamente a firme virilha.
- É grande o suficiente, hein!... - O corpo da vítima inerte recebia as ondas de choque, o estalar da bunda, subjugando às rédeas de seus cabelos, que sacudia-lhe o torso, o seio penso. Isso apressava a respiração dele, os batimentos cardiácos, emitia uivos guturais... Então explode numa ejaculação intensa de esperma misturado às fezes.
...Insistentes batidas na face fizeram-na despertar assustadiça, o corpo débil. Bruto batia-lhe no rosto empunhando o avantajado strap-on. Embebeu-o no cálice de bloody mary, esfregava em sua boca violácea, agora sem mordaça, cutucando os mamilos arroxeados, a ameaçar o ventre dela. Por trás dele assombrou-lhe um manequim trajado num velho vestido e tinha um crânio humano fixado ao pescoço.
- Conheça a minha mãe... - Ficara com a cabeça descarnada pelos vermes após a exumação. - Hoje acordou indisposta... Repete os mesmos insultos... A senhora fala demais! Qualquer dia desses, eu a deixo sozinha... - A Retrucar um suposto diálogo mórbido entre o títere da matriarca falecida. - Você é minha mãe, sabia?... Eu saí dessa buceta!
Duma caixola com manivela, aprisilhou nos bicos dos seios machucados, dois fios elétricos. A cada girada do mecanismo, o corpo se contorcia em espasmos repetidas vezes, até que a uretra expelisse a urina quente, ao que bebeu regozijante. Tomou do enorme caralho artificial e introduziu abruptamente naquela vagina eriçada de pêlos.
- Este te faz gozar, vadia?... - Metendo e tirando com violência.
...O corpo inerme entrara em colapso. Num período intermitente extraíra quase quatro litros de precioso sangue. A vítima tinha as carnes frias. Quase cirurgicamente com um afiadíssimo cutelo decepou-lhe a cabeça, detendo o estrebuchar do corpo em choque. Desfez a mordaça, e entre os lábios lúbricos de sangue, o olhar da jovem num último reflexo de espanto, enfiou o pênis duro goela abaixo, enquanto segurava os cabelos desgrenhados, forçando o sexo oral...
Sem que se percebesse tudo aquietou alheio à providência divina. Oportunidade usada para esquartejar o cadáver, enterrar membros e outros pedaços, oferecer as vísceras aos caymans famintos num rio lodoso atrás do cemitério da cidade. Agora tudo parecia sóbrio ao se avistar o casario debaixo do céu... Ficaria um filho órfão à espera infindável numa creche. A vida naquela expectativa de que algo acontecesse.   

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

URBANOS GIRASSÓIS ========


                      Uns girassóis no canteiro da avenida
                     Incongruentes dourados na paisagem urbana,
                     Semeadura de beleza em meio às pedras.
                     Tuas pétalas tingidas de poluição,
                     Exalas inconcreto perfume...
                     Ramalhete de um amor impossível.
                     Ao sabor da aragem dos automóveis velozes,
                     Sob a chuva melancólica desses dias.

                     Emolduram a miséria dos desvalidos
                     Viventes do lixo.
                     Logo ali, uma velha que acompanha sua solidão.
                     À meia-noite outra ronda desconfiada dos policiais,
                     A fina flor dos malandros, herdeiros pixotes
                     Habitantes das sombras.
                     Na esquina despetalar-se a dama da noite,
                     Tudo em vão...

                     Urbanos girassóis a enfeitar
                     A fealdade do mundo. 

sexta-feira, 17 de julho de 2020

ALGEMAS DE AMOR ==========

Ocorreu que um casal de ladrões foi pego furtando num desses magazines populares. De olho, o circuito de câmeras "dedo-duro" flagrou o delito a dois. 
A ladrona era bem esbelta, mas ganhara tronco e bunda vestindo algumas blusas, mais calcinhas, umas sobre as outras em disfarçadas idas e vindas ao trocador. Obstinada frente dum espelho com o jeito do cabelo em parafusos, tingido de loiro artificial. Enquanto o meliante mancomunado, entre distinto e gatuno, dava cobertura vigiando as vendedoras da loja, também exibia a morenice de seu charme...
Presos às algemas, ambos se acusavam na ante-sala da delegacia, a purgar as culpas um do outro. Brigaram diante da autoridade policial, durante o interrogatório no qual se fazia a acareação.
- Pera lá!... Então vocês são casados? - Inquiriu o Delegado de plantão, bigode espesso rigorosamente aparado. Camisa de compridas mangas abotoadas, uma séria gravata monocromática azul-anil, ostentando grossa aliança de casamento.
- Amasiado, Doutô... Nem tem cinco anos ainda.
- ...Quem casa devia honrar as calças que veste.
Tinha mais, havia denúncia do modo operandis da dupla de amantes larápios. Seduziam jovens solteiros, descasados em busca de aventura, incautos aposentados e depois assaltavam.
- A moça que é a Cinderela? Ou seria manequim de passarela? - Estendeu-lhe as provas já despidas.
- Eu... Imagina, Senhor... - E riu. A amarfanhar o cabelo aparafusado.
- Marluze Inocêncio Nobre. - Soletra o "Delega". Um velhote dera queixa quando depenado num hotel decadente, lá no centro da cidade. Todos bêbados, quem conseguiria provar o golpe... Porém, neste deram mancada.
- Ela falô que tava precisando dumas calcinhas, saia, blusa... Né, chefia.
- Mulher tem necessidade, meu filho!
- Jesus Cristo é testemunha... Eu disse, vamô fazê o crediário certinho...
- Com teu dinheiro, Vandelton?... Cafetão de puta pobre!
- Tu tá me confundindo, cachorra?... Fecha essa matraca.
- Dou nome aos bois, sim.
- Fica me entregando... Bandido não tem nome, é apelido. - Retrucou o tal. Logo o Doutor apontaria cada caput. Assinara um artigo 35 do código penal, por associação ao tráfico. Seguido do artigo 171, acusado de estelionato. Mais outro artigo 155, devido a furto de veículo. 
- Senhor, esse aí é só falsidade!... - Marluze por um instante esboçou chorar. O peito ferido de amor matado. Alma gêmea apunhalada... A paixão incendiou seus corações numa quermesse na comunidade. Dali dois anos sem cerimônia, panos juntados. Enlace interrompido da vez que ele puxa uma cana-dura... Esqueceram facilmente as pipadas de crack, os goles de vinho batizado, ouvindo cd com canções do Fábio Jr., prazeres no cafofo de madeira à margem dos trilhos da ferrovia, naquela vida sem rumo. Tonta, fizera desabar um barraco da amante piriguete dada sua paixão incondicional...
- ...Eu tava lá a contra gosto.
- Jura!... Contra gosto sou eu abrir as pernas pra tu... Baita mixaria!
- Epa!... Isso aqui não é a vara da família, hein. Presta atenção, cacete! - Interveio a autoridade presente, largando o café puro que bebia.
- Mentiroso!... - Quis acertá-lo.
- Vai revelá desse jeito nossas intimidades?... As celas tem escuta - Disse diminuído no seu ego. - Ô, camarada... Não escreve isso aí, não! - Suplicou ao escrivão discreto num canto do gabinete.
Tudo porque, acredite (nas entrelinhas), ela era réu primário, aliás safava-se em toda fita deles. Assim, o vagabundo não queria ver alongada a "capivara" de crimes.
- Doutô, essa mulher... - Esforçou-se para achar a palavra furtiva. - Ela é... Cleptomaníaca! - Acusou o dito entendedor de psicologia.
- Não minta deste jeito... - O coração dela que sofria um trauma.
- Rouba tudo que vê... É uma coisa!
- Não estrague a minha vida... Nem acabe com a minha paz. - Queixou-se a ladra. Daí ensaiou certo mal-estar e deram-lhe um descartável copo d'água.  
- Foi ela quem me incitô, Doutô...
- Tu me enganou...
- Pode vê, Chefia... Eu nem tô cum nada em cima.
- Pô, figura!... - O Delegado encarou o ladino. - Vocês estavam no setor de moda feminina... O malandragem não ia querer uma sainha... - Então demonstrou sua perspicácia policial.
O sistema criminal idem levantou um assassinato cometido pelo vulgo. Faltando responder.
- ...O cara se engraçou cá minha mulher!
- Um crime passional...
- Legítima defesa, Doutô.
- Com duas facadas nas costas do morto?
- Nóis se embolô, a lâmina caiu... Ele vacilô e correu. Ali na forte emoção defendi minha honra. - Nisso ela se manteve calada. Não quis parecer cúmplice daquele desatino amoroso, preservando sua inocência infiel. Contudo, talvez, lá no fundo, o pilantra lhe tivesse algum apreço.
- Meu arrependimento foi não ter voltado, pra ficar com essa aí. - Parecia sincero.
- ...Depois disso, não amo mais. De jeito nenhum!
- Eu é que não acredito em tu.
- Você que me tirou do caminho, eu era mulher direita...
- Aí... Já tá mentindo, porque tu é canhota.
- Confiei nele, Senhor, deu nisso...
- Pois vou autuar os pombinhos... Inclusive, o Vandelton, segundo estes documentos que estão sendo apurados... - Mexia uns papéis distribuídos pelo tampo da mesa. - Ainda deve à Lei... Os dois pra gaiola! - Liberdade agora, seria aquela imensa estátua distante, na entrada da Baía de Manhattan, que ele assistiu em um filme de televisão. Tal como veria os dias na telinha da cadeia...
Foragido o bandido pródigo não tinha mais indulto. Perdera o endereço do presídio, num feriado do dias das mães. E quem sabe, Marluze se torne uma moça bem-comportada.

domingo, 15 de dezembro de 2019

O 'HOMEM DE DEZ MIL ANOS' # 1

Assentou-se o 'Homem de Dez Mil Anos' junto à uma nascente. Acima o mosaico de casas resplandecia na encosta sob a luz da tarde tranquila. Eis que se vislumbrava o reflexo de uma mulher no espelho d'água trazendo um pote.
- Posso eu também tomar desta água? - Aproximou-se largando o cântaro às margens do regato.
- A fonte dá de beber a quem tem sede. Sacia pois a tua.
- Pudera matar minha vontade...
- Seja qual for tua sede farta até o último gole.
- Bebo aqui a longos anos... Esta nascente é a mesma.
- Por certo ainda que tu sejas a mesma, as águas que fluem da fonte jamais. Pois o hoje mesmo que não percebamos, é diferente do ontem. O que é o presente senão o fim do passado no porvir. Embora parados, todos seguem adiante.
- Coisa alguma me satisfaz. Torno a ter sede. - Ele a vigia na sua faina. - O que possuía de valor dei aos necessitados. Em troca nada recebi.
- Julgavas consolar teu espírito com a caridade dos hipócritas? Que oferecendo uma esmola de vez em quando estará sustentando os famintos? Lembra-te, límpido é o manancial que jorra do coração. Partilha dele se puderes.
- Quis ser justa e fui vil. Errei por minha culpa. - Fez içar o pote transbordante. Ele a amparou.
- Assim como o veneno é próprio da serpente, também será o erro na pessoa. Todavia, os males e os pecados não estão nas coisas. Existem apenas na mente humana conforme sua própria moral.
- E se eu me corrigir... Isso há de me tornar mais feliz?
- Porque fazes da felicidade a mesquinhez de um único indivíduo. Uma pessoa alegre por alguma razão, não fará a felicidade da humanidade como um todo.
- Insistem que eu devo rir. Para não parecer sisuda.
- Sorria se quiseres contanto, que não seja o riso da tua idiotice.
Num sinal de gratidão ela abraçou-o e regou-lhe os cabelos com seu pranto.

domingo, 3 de novembro de 2019

JARDIM DE INFÂNCIA =======

Não importava quanto a vida lhe negue, o moleque sabia conquistar sua sobrevivência. 11 anos talvez. Pelas padarias, cruzamentos, ganhava um bom bocado que ameniza a fome. Ele mastiga as palavras em meio aos pedaços dum salgado.
A mãe nalgum lugar apartado da cidade, inquieta pensando nas maldades do mundo, não impedia de escapulir. Era o gênio dele respondia à assistente social.
Pedia, insistia. Voz contrita consistia a artimanha:
- Pô, tio! Paga aí... Ô, tia! Tô cuma fome. - Assim como um parente distante que aparecia de repente. Encontro fortuito de sagacidade ludibriadora da bondade. Apelava até conseguir. Uma coxinha, descolava um café com leite, doce ou refrigerante.
Um simples moleque. Ele o futuro da pátria. Pequeno herói do infortúnio, dado à travessuras urbanas, trazia o olho roxo socado por um guarda municipal da patrulha. Esses corrigiam por linhas tortas... Nisso deu uma golada num suco gelado, sabor artificial de laranja. Não era um menino mau, pois que aprendeu a criar "coleirinha", cuidado pela mãe. Tem uma gaiola pendurada no barraco da favela.
Há os que insistem em lhe dar conselhos. Perguntavam se o moleque tinha mãe... Se fosse filho de chocadeira! Enteado da sorte madrasta isso sim. Mesmo uns coleguinhas de rua sacaneavam dizendo, que nem o seu pai quis conhecê-lo. E riam com aquela inocência perversa dos fedelhos.
Lambendo os dedos engoliu o último pedaço, entornou o que sobrara no copo descartável. Depois de amarrotar o guardanapo, lançou fora da lata de lixo outra vez... Acertaria na próxima. Vendo isto a garçonete obriga que apanhe o papel.
Distraía-se com a programação exibida em televisores dos bares. Atendia o malandragem junto à esquina por um favor, filósofo da "letra" do asfalto. Garimpando um punhado de moedas, se dava o luxo de escolher o que comer nas vitrines tentadoras das bombonieres. Comprava drops pra agradar a garota bonita, que vende aos passantes ali na frente da porta do Banco. Daí era penar de bolsos vazios, estômago acusando novamente a fome. Passar por baixo da catraca do ônibus, se o motorista deixasse.
A vagar pelas calçadas, o moleque aventurando-se nos jardins da infância citadina, entre os bosques furtivos de prédios, desperta debaixo da marquise dos grandes magazines, quando o sol se levanta para um novo dia. Este querubim decaído, sujeito à pequenas trapaças dado o caráter da sociedade. 

terça-feira, 30 de abril de 2019

O 'HOMEM DE DEZ MIL ANOS' # 0

Seu quintal abrangia o planeta inteiro. Deste modo que preferia ver os espaços além da estrada, enquanto caminhava a esmo. Era no gozo da sua liberdade que o 'Homem de Dez Mil Anos' ampliava a dos outros ao infinito. Se a natureza o fizera humano decerto não faria sentido comportar-se feito as plantas, presas às raízes num único lugar; afim de florescer e brotar os frutos. Contornando o penhasco avistou pessoas ao redor de uma fogueira, junto à arrebentação das ondas logo abaixo. Diziam-se também viajantes em busca de seus destinos. Tinham os corações oprimidos transbordantes pela boca.
- A que viemos?... O que somos? É a sombra que persegue meus passos... - Expôs melancólico um deles.
- Reparem nossas sombras formadas pelo lume do fogo. - Iniciou o 'Homem de Dez Mil Anos', mostrando as imagens tremeluzentes contra o rochedo. - Elas estão lá, nós as vemos... Mas de fato elas existem? Assim é o Homem, miragem cósmica no universo. Preocupem-se em manter o fogo aceso. Seria o bastante.
- Nessas andanças um anjo me revelou que os tortos caminhos não levam a lugar algum. Que há só um caminho... Por isto minha jornada cessa aqui.
- Porque as pessoas temem Deus haverão de deixar de investigar os mistérios da existência?
- Nós nada somos ante os desígnios divinos. - Insistiu o andarilho resignado.
- A semente só germina tendo o caroço se libertado da casca... Haverá a terra de recriminá-la por tal audácia?
- Olho para o céu ao entardecer e pergunto a razão toda dessa angústia. - Disse a viajante aquentando as mãos no calor das labaredas.
- Não perguntem ao universo, onde nada repercute, conquanto saibam a resposta. O que importa sobre as nuvens não são as figuras que elas formam no céu, mas as forças da natureza que agem sobre elas. Assim procedendo estarão livres do cabresto social.
- Será possível nesta sociedade viver segundo nossa própria vontade?
- Eu sonho com o dia em que a Terra pare. Nesse dia as pessoas deixarão de lado as coisas fúteis do cotidiano, cumprir a despótica ordem estabelecida e raciocinar sem esta avareza da ganância. Para serem então novas pessoas, num mundo verdadeiramente novo. - Prestes a seguir tornou dizendo. - Tens a chave e a fechadura resta saber o que há por trás da porta... Quem tiver coragem abra!

domingo, 23 de setembro de 2018

PRÓLOGO AO VERDADEIRO =====

Às 7:00 h da matina, as notícias não eram nada boas...
"...Política!" - Pensou Zeca calando o rádio na cabeceira. - "Nunca muda, mas os políticos traíras arrumam uma desculpa qualquer... E ficam a favor dos tubarões."
Do lado de fora pelo quintal, numa perseguição frenética, o cachorro botava o gato do vizinho pra correr. Na certa estivera fuçando no lixo da casa, sendo surpreendido.
"Se melhora pra alguns contam prosa de que foi pra todos... O prejuízo sempre fica é pros mesmos." - Ninguém a quem recorrer bem sabia. Tinha que dar seu jeito. Assim, ele se martirizava tentando acordar.
O sol crepita as finas telhas de amianto, enquanto o ventilador ruidosamente soprava inútil. Mais outra manhã que rompia na rachadura do bloco nu.
"...Ainda ameaçam cortar as horas... Diacho de vida contra a maré!" - Ao saber que a greve ia dar em nada, se levantou com aquela decisão bem própria dos derrotados pela milionésima vez. E sua intenção íntima não cogita o reboco do quinto andar. Nem assembléia e blábláblá.
- Só tu que é besta!... Eu disse que essa conversa tinha serventia nenhuma. Já viu gente como nós ter querer? - Maldisse uma voz abafada pelo travesseiro.
Parece que o Zeca teria de ouvir a ladainha da mulher a vida inteira. E exato nas primeiras horas do dia... Duro era admitir! Somente queria o melhor pra todo mundo.
"Saracura desgraçada!!... Nem convalescida emudece" - Ruminou as idéias ainda babando o creme dental. Antes a mulher, ao menos, tranquilizava com as saliências. Tinha gosto em conversar, daí salgou a língua, vixe! - "...Digo pra não ser assim, ela não ouve." - Além do seio, a cirurgia arrancara-lhe o prazer. Tal operação fez piorar o gênio dela... Um amigo seu tinha razão e ele apenas confirmava, casamento é de escolha própria!...
- Pai!... - Despertou então. - Vamô no mangue?... - O filho esticava-lhe a barra da camisa aos trancos. Manteve o silêncio cuspindo fora a espuma do dentifrício... Mangue? Manguezal fora antes das máquinas enterrarem metade na construção do terminal de cargas. Os guindastes erguidos a assomar o horizonte da paisagem. Testemunhou da sua janela o alagado sumir e as guapirás, avicênias minguarem esturricadas. Juntamente com ele os marrequinhos de bico-vermelho, os jaçanãs, as garças.
Terminado o café passou a mão nuns trocados. Pôs o garoto na garupa da bicicleta, que se danasse a maldita responsabilidade. Estava de luto pela categoria. Decretara feriado.
- Some infeliz! Faz alguma coisa que preste... - Praguejou de dentro a tirana, ao sair da cama calçando os chinelos gastos, à procura do enchimento do sutiã.
Zeca adentrou numa picada no resto da restinga até o mangue. Ali passou bom tempo, a cara mais enfiada na lama do que caranguejos na toca. Sob o olhar atento do menino curioso.
- Tem uçá ai, Pai?... Tem? Insistia o garoto, bem orgulhoso dele. Mal reparando na careta do Zeca no instante que um caranguejo pinçara seu dedo tenazmente...
Quando com muito custo completou duas fieiras resolveu ir simbora. Não sem antes se divertir com o menino na maré, esperto dentro d'água feito um biguá atrás do peixe. Tendo a imagem da mulher na cabeça, mais o grasnir dum quero-quero pelas margens do estuário, partiu em direção ao centro da cidade. Acreditando naquela voz fantasmagórica da esposa, que lhe estimulava forçosamente fazer algum dinheiro.
Emergia do mangue pra se atolar no asfalto. Numa esquina largou as dúzias de caranguejos que foram obrigados sambar o "miudinho" cadenciado com as seis patas, tal a quentura da calçada.
- Tá barato aqui na minha mão, hein!... Caranguejo fresquinho!! - Zeca arriscou no pregão improvisado. Palmeando alto afim de chamar a atenção.
Uma certa hora da espera pelos interessados na iguaria (já não tão fresca), os trocados valeram a si duas canas e uma tubaína pro filho. Nada demais, avaliou. Até o encorajara pedir cigarro a um pedestre... Matutava na vertigem da embriaguez, assistindo convicto a sorte dos bichos.
"Camarão que cochila a onda leva..." - Escapuliu indolente o refrão do pagode de partido alto.
Muito tempo também passou até o Zeca estar convencido de que ninguém tinha fome dos uçás. E mesmo os próprios haviam desistido de fugir daquela sauna inquietante no calçamento. Chamou o filho que distraía-se com a maré de sapatos dos transeuntes. O jeito seria pôr os caranguejos numa panela, preparar um bom angu com o caldo... A janta tava garantida.
"Se a maré tá braba, são os cabeças-de-bagre que a onda arrasta..." - Foi refletindo nisso que encostou a bicicleta junto à cerca de ripas. O vira-lata raquítico saudava fiel seu heroísmo diário. Logo apareceu a mulher, olhar fulminante, baforando a fumaça do cigarro na intenção de apressar as ofensas. Velhaco, ele estendeu na direção dela as fieiras.
- Olha aí, meu chamego... Graúdos como você gosta.
Por perto os últimos pardais e bem-te-vis num jerivá sonorizavam a tarde derribada sobre os morros além da vargem grande. Ao final do dia só o cachorro parecia estar satisfeito.
  

sábado, 25 de agosto de 2018

A RAZÃO DOS TOLOS =======

Que ela tinha uns hábitos estranhos ninguém negava. O cabelo sem pentear parecia denunciar a confusão mental que ia por dentro da sua cabeça. Ou mesmo colocar o maior número possível de vestuário sobre o corpo em pleno verão, nunca lhe causara estranheza. Mas chamá-la de louca seria confusão na certa, isto sim a levava à loucura.
Os sobrinhos quando queriam atazaná-la logo diziam que ela era doida demais. E disparavam em gargalhadas fugindo da tia ensandecida. Ela rejeitava tal idéia como se um fantasma a perseguisse. Desesperada corria pra entupir-se de calmantes.
Jamais fora mais longe que o portão de casa. Além é claro, do pronto-socorro durante suas crises. Onde costumava entreter a longa fila com seus casos quase fatais. Da vez que passara um final de ano em coma, praticamente vegetativa, só acordando no ano seguinte como que ressuscitada.
- Não acredita...? Na tv vira e mexe mostra gente que vive feito repolho. O hospital inteiro veio me visitar... Juro. Ficaram impressionados! Coisa de Deus!! - Dizia a um desconhecido qualquer com quem conversava na maior das intimidades. A discorrer sobre o comportamento das enfermeiras, sempre se referindo como verdadeiras pestes. - Essa aí de santa só tem a cara... - Indicando com desprezo uma inocente que cruzara de um consultório a outro, distinta no seu uniforme imaculado... No mais, o orgulho que sentia das doses cavalares de tranquilizantes que já havia tomado. Numa minúcia de prescrição medicamentosa de fazer inveja a muito doutor. Tudo pelo princípio ativo e dosagens específicas. Algumas vezes ainda presa à maca, Ela já vinha exigindo o que deveria ser ser ministrado. Como ficaria curada, fosse outro remédio teria efeitos colaterais. Nem carecia incomodar o clínico de plantão. O médico era um mero detalhe. A injeção é que resolvia seu atarantamento. Dali somente aceitava sair medicada.



Nem sempre dizia coisa com coisa, repetindo-se num mesmo assunto. Retomando a descrição anterior do ocorrido como fato novo. Sucedia momentos em que ensimesmava num silêncio tumular. Entretanto, acontecia sair-se com uma dessas:
- Sabe, eu não queria ter nascido gente... Era melhor nascer árvore. Sozinha num quintal, num pasto. - Dizendo isto plantou-se de pé com os braços estendidos para o alto, os dedos espichados imitando dois grandes galhos.
- Tolice, mulher... - Repreendia a vizinha. - E se fosse uma planta no meio da mata? Ia ter árvore de todo lado.
- Qual o quê! Árvore não fala. Cada qual cuida da sua própria vida... Sem aborrecimentos.
- Enterrada no chão assim...? - A outra ironizou.
- Desde que me conheço por gente, vivi enterrada nessa lugar.
- Ih... Parada deste jeito que você está! Ia cansar, cair e quebrar o galho.
- Ao menos tinha alguma serventia. Virava porta. Talvez, uma canoa...
- Que foi!? Ficou maluca de vez!
- Eu?... Nada! - Suspirou fundo lastimando sua própria condição. - ...Cansei de ser gente. - Em seguida balançou os braços como se uma aragem repentina lhe pendesse os galhos.
     

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

À MEIA-NOITE DO NOVO ANO =====

Foi numa dessas festas de réveillon. Eu era convidado e estava desacompanhado, um tanto sozinho entre os convivas. Ali em meio a diálogos, situações, não pude escapar a avaliadores pensamentos, por vezes despertos pelo rito social daquela ocasião...
- Ah, querida, pra ajudar a sorte me precavi. Cartas, folha de louro na carteira, troquei os lençóis... Até búzios!! As coisas precisam dar certo! Não poupei nem o marido. Tá de cueca amarela. Né, meu bem... - Ele riu, tinha uma espécie de segredo descoberto.
- ...Cada ano experimento algo diferente. Pular 7 ondas do mar, uma comida sabática, agora aprendi um mantra de prosperidade. Mas não posso revelar à ninguém...
- Xô,xô! Vamos afastar os maus fluidos... - Sobressaiu-se uma voz efeminada. 
- Como sou religioso, rezo, faço promessas, nunca tive essa necessidade... - O branco do traje lhe convinha. Trazia consigo um precioso amuleto sacro... Deixei-me envolver numa conversa de um grupo formado no sofá e poltronas. O que esperar para o próximo ano? Conforme consultam tarólogos entrujões, astrólogos sem lunetas, em suas previsões óbvias de amor, saúde, dinheiro. Previsíveis conselhos consoladores. A recomendar simpatias, banhos de flores, sais e ervas, sessões espirituais. Essas supersticiosas pessoas esclarecidas (de suposto status, algumas cultas!?) dizem piamente acreditar, sem se diferenciar nada da gente comum, tal qual a doméstica ou o torcedor de futebol...
Se bem me recordo a trilha sonora dum aparelho estereofônico reverberava pelo ambiente músicas de Elvis Presley, Frank Sinatra, Johnny Rivers, Dionne Warwick, Barbra Streisand, Roberto Carlos, Ângela Maria, Nelson Gonçalves, Charles Aznavour, Peppino di Capri, Julio Iglesias, embalando latentes emoções.
- A festa está maravilhosa, Sr. Urbain... - Ouvi duma faceira conhecida a mim apresentada momentos antes, que parecia ter errado no vestido para a noite, passando entusiasmada através da sala rumo a sacada da varanda.
Lindas velas desfeitas em brandas chamas ardentes iluminavam os recintos. Dourados reluzentes enriquecem a decoração. Havia um antigo relógio de pêndulo que marcava as horas, na derradeira volta daquele velho ano.
- ...Sim. É importante preparo para o mercado. E saber capitalizar! Entender a energia que o move. Pouco rende a financeira, sem a intuição mental. Não por acaso, sempre escolho datas emblemáticas quando estabeleço um novo negócio, números simbólicos, ligações ancestrais. Faço mesmo um estudo extra estatístico, um mapa astral business!... - Dizia um obstinado empreendedor, desses que empenham em crendices seu sucesso. - ...Atitudes positivas colaboram muito. Manter a cabeça contra as dúvidas. O universo devolve o que você mentaliza! - Afirmativamente concordaram aqueles entorno dele, imaginando girar a Roda da Fortuna.
Daí certo indivíduo já embriagado antes da hora, a todos proferiu seu raciocínio etílico:
- Ei, pessoal!!... Quero falar o seguinte... - Quis parecer sóbrio, a espontaneidade desalinhava-o. - ...Um minuto de atenção!... A gente não pode se acomodar. O próximo ano é de mudança! - Cambaleou satisfeito, porém decepcionado com a solidariedade.
É evidente que dentre tantas razões este ritual se repita. Talvez homens e mulheres não se deem conta da misteriosa expectativa... As pessoas comemoravam o término daquele ano por terem vencido uma vez mais a morte, adiado para mais tarde o seu fim...
Então, pelos céus refulgem as estrelas cadentes dos fogos de artifícios, o ribombar dos rojões, todo espocar do foguetório. A varanda repleta, outros debruçavam-se nas janelas, saíram ao quintal de mãos dadas, abraçados felizes da vida, enquanto miram o céu profundo... Nisso espocavam champanhes, transbordaram taças tilintantes, batiam corações desejosos em realizar velhas esperanças...
De minha parte o que sinto, é que o amanhã será outro dia. E a certeza do sol que se levanta.
    

quinta-feira, 13 de abril de 2017

CONTO PASCAL =====

Pelos dias da semana santa cristã vinha perambulando (nada de novo) quando deparou-se com um peixe morto na calçada, as escamas gratinadas ao sol, o olho seco vítreo, assado sob à luz outonal da cidade.
Um feriado assinalado em cruz vermelha no calendário, ainda romano. Época de férteis ovos de páscoa em enfeitadas gôndolas comerciais, pratos a base de peixe e frutos do mar. Reportagens falavam boquiabertas dos preços, tanto como do sacrifício amargo de cada um para o doce consumo. A reprise sádica da Paixão de Cristo nos canais de tv. Lotadas igrejas piedosos sermões, pregações extremadas. Desde o Natal o cordeiro primogênito de Deus havia sido cevado dos conhecimentos da vida rés, portanto estava pronto para ser servido à fé faminta. Despedaçado em cerimônia antropofágica, repasto de almas ávidas negociadas nas alturas por "Todos-Poderosos".
Nisso lembrou do panfleto bíblico dos "Testemunhas de Jeová" entregue num cruzamento da avenida. Jazia no bolso da calça, graças ao seu sentimento politicamente correto, pois a senhora que lhe estendeu as divinas escrituras abrasava com o calor dourado do meio-dia... Nunca sabia o que fazer com as inutilidades, a instrução era que não se jogasse aquelas palavras na sarjeta. Considerando-se distante dessas coisas. Pouco culpado pelos reveses do mundo. Até ele parecia caridoso, dando trocados aos pirralhos malabaristas dos semáforos. Onde saldava sua dívida egoísta.
Aquilo é possível que fosse um sinal sobrenatural. Ele incrédulo diante do milagre, quando o peixe saltasse da calçada arredio e nadasse pelo asfalto seguindo o tráfego, a multiplicar-se e matar a fome insaciável... Acredite, nem tinha tomado tantos cálices assim. Embora uma pomba urbana arribasse duma luminária do poste da rua... Ah, morte inútil! Sem ressurreição.
Mas não deixou de pensar naquele desperdício.