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terça-feira, 25 de agosto de 2015

O PASSADO TE CONDENA =====

Retornado tanto tempo depois a sua cidade natal parecia um estranho. Havia também certa estranheza da vivida paisagem urbana. Prédios construídos sobre os antigos chalés de madeira. O coreto dos namoricos, o chafariz esguichante, o relógio digital do calçadão, extraviados décadas atrás. Embora o número de habitantes aumentara, se espalhasse nos rincões do lugar, pouco mudara de fato.
As mesmas figuras citadinas, seus descendentes vagueiam nas portas dos bares, malucos, alcoólicos, pedintes pelas  mesas da calçada. E há noites lunares em que eles proliferam. Assim, um mendigo masturba-se ao olhar as periguetes que bebem incomodadas, energéticos e doces refrigerantes.. As portas dum Citroen prata escancaradas, vazando tunado hits do funk... Alguém expulsa o inconveniente, sem no entanto o sujeito largar os bagos entre as calças. Nisso o dono do bar oferece-lhe um melão e emenda a típica dialética do balcão.
- Fura esta porra, recheia, entendeu?... E depois come! Praga, some daqui!! - Abraçou desajeitado o fruto apodrecido. Sem dúvida tratava-se de um velho conhecido.
...Do nada surge aquela pessoa enigmática. Rompe a intimidade, o aprisiona num encontro de olhares curiosos. Se põe a sentar.
- E aí, lembra de mim?
- Sei não...
- Tá vendo, o cara não se lembra mais de mim! - Critica amigavelmente. Era um antigo vizinho da infância, num dos bairros em que morou à época. Tenta trazer pela memória. Contudo, dissesse o nome não se recordava... Enveredara na senda do crime. Tráfico. Morte de policiais. Acerto de contas com iguais bandidos. Puxou anos de cadeia. Gostava muito, muitíssimo de mulher. Por isso preza a liberdade. Tem inclusive uma estátua no "criado-mudo".
- Cadeia é você preso numa cela cheia de cão danado. Na secura... Querendo morder o rabo do outro.
Risca-lhe seu pensamento as brincadeiras de moleque repletas de traquinagens, pálida lembrança de inocentes perversidades da turma.
- Tem coisas que a gente não se lembra...
- ...Já pensou se você tivesse me devendo? - O tal ri entre uma nuvem de fumaça de cigarro Free Slims vermelho.
Tem problemas de insônia. Fuma em demasia. A bebida que parece ser sem exagero, serve como paliativo. Apenas um conhaque Domecq e danou a falar com a sobriedade dos embriagados. Do quanto a vida podia ser injusta. Difícil pra quem tem sentimentos. Laços de amizade. O valor de um proceder. E mais recordações que não consegue atinar.
- Você tem vindo sempre aqui...
O outro expressa surpresa no olhar.
- Trabalho na sala de segurança, lá em cima. - Aponta o 2º andar do prédio com vista para a calçada. Faço segurança à paisana. tenho visto pelo monitor do circuito de câmeras.
A conversa perdera o tom agradável.
- Nem acreditei quando reconheci.
- Não sou bom de memória.
Você era um sacana!...
- Faz tanto tempo.
- Vai ver eu sou um cara, que as pessoas pouco reparam... A não ser para tirar um sarro. - Sua fisionomia bastante sinistra intimidava;
Porque houve uma vez, se lembra, daquela inconsequente piada juvenil. Os rapazes brincavam com as espadas. Descobriam-se na sua masculinidade. O flagrante armado desnudou a cena, de contornos picantes na boca da vizinhança. Surras dos pais. Risos, humilhações. Até se esquecerem daquilo tudo.
- Veja, você pode estar se confundindo... Tenta dissuadi-lo.
- Sempre guardei fisionomias... A gente tenta deixar o passado pra trás.
A cerveja pilsen acaba. Esboçou chamar o garçom, sendo interrompido.
- Vamos acertar nossa dívida... Não se preocupe, já paguei tua conta. Agora preciso cobrar. - Deixa entrever dentro da jaqueta seu revólver.
Viu o copo vazio do último gole gelado. Depois mirou a rua, rutilante de constelações das luminárias dos postes, semáforos, luminosos do comércio, numa noite de repente estanque. Sequer almas-vivas...
- Pensa bem no que você vai fazer... - Nada o demove.
Talvez fosse uma travessa que passara algum dia. Forçosamente conduzia-se rumo à escuridão, sob uns manacás floridos. Subjugado num abraço hostil pouca chance teve de agitar-se, até a cutilada profunda de um punhal atingir suas vísceras.
Ao rés da sarjeta, no negrume extenso do asfalto. Do casario que se agiganta surreal. O mundo invertido adentra a retina. Lá adiante um gato pardo furtivo cruza a avenida nas sombras.