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domingo, 23 de setembro de 2018

PRÓLOGO AO VERDADEIRO =====

Às 7:00 h da matina, as notícias não eram nada boas...
"...Política!" - Pensou Zeca calando o rádio na cabeceira. - "Nunca muda, mas os políticos traíras arrumam uma desculpa qualquer... E ficam a favor dos tubarões."
Do lado de fora pelo quintal, numa perseguição frenética, o cachorro botava o gato do vizinho pra correr. Na certa estivera fuçando no lixo da casa, sendo surpreendido.
"Se melhora pra alguns contam prosa de que foi pra todos... O prejuízo sempre fica é pros mesmos." - Ninguém a quem recorrer bem sabia. Tinha que dar seu jeito. Assim, ele se martirizava tentando acordar.
O sol crepita as finas telhas de amianto, enquanto o ventilador ruidosamente soprava inútil. Mais outra manhã que rompia na rachadura do bloco nu.
"...Ainda ameaçam cortar as horas... Diacho de vida contra a maré!" - Ao saber que a greve ia dar em nada, se levantou com aquela decisão bem própria dos derrotados pela milionésima vez. E sua intenção íntima não cogita o reboco do quinto andar. Nem assembléia e blábláblá.
- Só tu que é besta!... Eu disse que essa conversa tinha serventia nenhuma. Já viu gente como nós ter querer? - Maldisse uma voz abafada pelo travesseiro.
Parece que o Zeca teria de ouvir a ladainha da mulher a vida inteira. E exato nas primeiras horas do dia... Duro era admitir! Somente queria o melhor pra todo mundo.
"Saracura desgraçada!!... Nem convalescida emudece" - Ruminou as idéias ainda babando o creme dental. Antes a mulher, ao menos, tranquilizava com as saliências. Tinha gosto em conversar, daí salgou a língua, vixe! - "...Digo pra não ser assim, ela não ouve." - Além do seio, a cirurgia arrancara-lhe o prazer. Tal operação fez piorar o gênio dela... Um amigo seu tinha razão e ele apenas confirmava, casamento é de escolha própria!...
- Pai!... - Despertou então. - Vamô no mangue?... - O filho esticava-lhe a barra da camisa aos trancos. Manteve o silêncio cuspindo fora a espuma do dentifrício... Mangue? Manguezal fora antes das máquinas enterrarem metade na construção do terminal de cargas. Os guindastes erguidos a assomar o horizonte da paisagem. Testemunhou da sua janela o alagado sumir e as guapirás, avicênias minguarem esturricadas. Juntamente com ele os marrequinhos de bico-vermelho, os jaçanãs, as garças.
Terminado o café passou a mão nuns trocados. Pôs o garoto na garupa da bicicleta, que se danasse a maldita responsabilidade. Estava de luto pela categoria. Decretara feriado.
- Some infeliz! Faz alguma coisa que preste... - Praguejou de dentro a tirana, ao sair da cama calçando os chinelos gastos, à procura do enchimento do sutiã.
Zeca adentrou numa picada no resto da restinga até o mangue. Ali passou bom tempo, a cara mais enfiada na lama do que caranguejos na toca. Sob o olhar atento do menino curioso.
- Tem uçá ai, Pai?... Tem? Insistia o garoto, bem orgulhoso dele. Mal reparando na careta do Zeca no instante que um caranguejo pinçara seu dedo tenazmente...
Quando com muito custo completou duas fieiras resolveu ir simbora. Não sem antes se divertir com o menino na maré, esperto dentro d'água feito um biguá atrás do peixe. Tendo a imagem da mulher na cabeça, mais o grasnir dum quero-quero pelas margens do estuário, partiu em direção ao centro da cidade. Acreditando naquela voz fantasmagórica da esposa, que lhe estimulava forçosamente fazer algum dinheiro.
Emergia do mangue pra se atolar no asfalto. Numa esquina largou as dúzias de caranguejos que foram obrigados sambar o "miudinho" cadenciado com as seis patas, tal a quentura da calçada.
- Tá barato aqui na minha mão, hein!... Caranguejo fresquinho!! - Zeca arriscou no pregão improvisado. Palmeando alto afim de chamar a atenção.
Uma certa hora da espera pelos interessados na iguaria (já não tão fresca), os trocados valeram a si duas canas e uma tubaína pro filho. Nada demais, avaliou. Até o encorajara pedir cigarro a um pedestre... Matutava na vertigem da embriaguez, assistindo convicto a sorte dos bichos.
"Camarão que cochila a onda leva..." - Escapuliu indolente o refrão do pagode de partido alto.
Muito tempo também passou até o Zeca estar convencido de que ninguém tinha fome dos uçás. E mesmo os próprios haviam desistido de fugir daquela sauna inquietante no calçamento. Chamou o filho que distraía-se com a maré de sapatos dos transeuntes. O jeito seria pôr os caranguejos numa panela, preparar um bom angu com o caldo... A janta tava garantida.
"Se a maré tá braba, são os cabeças-de-bagre que a onda arrasta..." - Foi refletindo nisso que encostou a bicicleta junto à cerca de ripas. O vira-lata raquítico saudava fiel seu heroísmo diário. Logo apareceu a mulher, olhar fulminante, baforando a fumaça do cigarro na intenção de apressar as ofensas. Velhaco, ele estendeu na direção dela as fieiras.
- Olha aí, meu chamego... Graúdos como você gosta.
Por perto os últimos pardais e bem-te-vis num jerivá sonorizavam a tarde derribada sobre os morros além da vargem grande. Ao final do dia só o cachorro parecia estar satisfeito.
  

sábado, 25 de agosto de 2018

A RAZÃO DOS TOLOS =======

Que ela tinha uns hábitos estranhos ninguém negava. O cabelo sem pentear parecia denunciar a confusão mental que ia por dentro da sua cabeça. Ou mesmo colocar o maior número possível de vestuário sobre o corpo em pleno verão, nunca lhe causara estranheza. Mas chamá-la de louca seria confusão na certa, isto sim a levava à loucura.
Os sobrinhos quando queriam atazaná-la logo diziam que ela era doida demais. E disparavam em gargalhadas fugindo da tia ensandecida. Ela rejeitava tal idéia como se um fantasma a perseguisse. Desesperada corria pra entupir-se de calmantes.
Jamais fora mais longe que o portão de casa. Além é claro, do pronto-socorro durante suas crises. Onde costumava entreter a longa fila com seus casos quase fatais. Da vez que passara um final de ano em coma, praticamente vegetativa, só acordando no ano seguinte como que ressuscitada.
- Não acredita...? Na tv vira e mexe mostra gente que vive feito repolho. O hospital inteiro veio me visitar... Juro. Ficaram impressionados! Coisa de Deus!! - Dizia a um desconhecido qualquer com quem conversava na maior das intimidades. A discorrer sobre o comportamento das enfermeiras, sempre se referindo como verdadeiras pestes. - Essa aí de santa só tem a cara... - Indicando com desprezo uma inocente que cruzara de um consultório a outro, distinta no seu uniforme imaculado... No mais, o orgulho que sentia das doses cavalares de tranquilizantes que já havia tomado. Numa minúcia de prescrição medicamentosa de fazer inveja a muito doutor. Tudo pelo princípio ativo e dosagens específicas. Algumas vezes ainda presa à maca, Ela já vinha exigindo o que deveria ser ser ministrado. Como ficaria curada, fosse outro remédio teria efeitos colaterais. Nem carecia incomodar o clínico de plantão. O médico era um mero detalhe. A injeção é que resolvia seu atarantamento. Dali somente aceitava sair medicada.



Nem sempre dizia coisa com coisa, repetindo-se num mesmo assunto. Retomando a descrição anterior do ocorrido como fato novo. Sucedia momentos em que ensimesmava num silêncio tumular. Entretanto, acontecia sair-se com uma dessas:
- Sabe, eu não queria ter nascido gente... Era melhor nascer árvore. Sozinha num quintal, num pasto. - Dizendo isto plantou-se de pé com os braços estendidos para o alto, os dedos espichados imitando dois grandes galhos.
- Tolice, mulher... - Repreendia a vizinha. - E se fosse uma planta no meio da mata? Ia ter árvore de todo lado.
- Qual o quê! Árvore não fala. Cada qual cuida da sua própria vida... Sem aborrecimentos.
- Enterrada no chão assim...? - A outra ironizou.
- Desde que me conheço por gente, vivi enterrada nessa lugar.
- Ih... Parada deste jeito que você está! Ia cansar, cair e quebrar o galho.
- Ao menos tinha alguma serventia. Virava porta. Talvez, uma canoa...
- Que foi!? Ficou maluca de vez!
- Eu?... Nada! - Suspirou fundo lastimando sua própria condição. - ...Cansei de ser gente. - Em seguida balançou os braços como se uma aragem repentina lhe pendesse os galhos.