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terça-feira, 6 de outubro de 2015

O AMOR VENCEU... ========

Quem disse que o amor se deteriora ante as dificuldades cotidianas. Não para aquele casal de desvalidos. Apaixonados sob um pórtico neoclássico em ruínas, então contrariavam muitos litígios matrimoniais.
Alimentando seus modestos sonhos de vida doméstica. Viver para ser sua imperdível jóia rara. Que o sol e sal não fossem somente a paga do seu salário.
- Je vie de bec, mon amour. Ironizava tendo aprendido dum programa humorístico da televisão.
Se davam ao luxo de contemplar uma noite de lua. Acreditando que os astros responsáveis por os unirem (ele pisciano, ela de Aquário) mudassem aquela sorte monetária.
Juntos, protegidos da chuva que lava caudalosamente as imundícies da sarjeta. Revolver o lixo à cata das sobras deliciosas. Um final feliz de novela pela tv da padaria da esquina. Ou o fundo musical num alto-falante do carro de propaganda gritando em pleno calçadão, no dia dos namorados:
" Baby, sem você não dá!" - Trilha sonora acidental daquele idílio público. Cenário dum beijo inesquecível  com sabor do seu anterior gole de pinga, embebido no gosto acre da perdida escovação dentária dela.
Pouco importa se as flores são achadas também murchas, num agrado que faz, sendo o amor quieto e suarento debaixo do abrigo de papelão ao rés da fachada duma agência bancária.
E se lhes consomem as dúvidas. Caso não a quisesse feito um prato de comida. Entendesse que não fosse o homem da casa, nem tenha conquistado o mundo... Era crer o amor venceria tudo.
Convicto da razão que só o coração conhece. Bem contrário a si é mesmo o amor.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

O PASSADO TE CONDENA =====

Retornado tanto tempo depois a sua cidade natal parecia um estranho. Havia também certa estranheza da vivida paisagem urbana. Prédios construídos sobre os antigos chalés de madeira. O coreto dos namoricos, o chafariz esguichante, o relógio digital do calçadão, extraviados décadas atrás. Embora o número de habitantes aumentara, se espalhasse nos rincões do lugar, pouco mudara de fato.
As mesmas figuras citadinas, seus descendentes vagueiam nas portas dos bares, malucos, alcoólicos, pedintes pelas  mesas da calçada. E há noites lunares em que eles proliferam. Assim, um mendigo masturba-se ao olhar as periguetes que bebem incomodadas, energéticos e doces refrigerantes.. As portas dum Citroen prata escancaradas, vazando tunado hits do funk... Alguém expulsa o inconveniente, sem no entanto o sujeito largar os bagos entre as calças. Nisso o dono do bar oferece-lhe um melão e emenda a típica dialética do balcão.
- Fura esta porra, recheia, entendeu?... E depois come! Praga, some daqui!! - Abraçou desajeitado o fruto apodrecido. Sem dúvida tratava-se de um velho conhecido.
...Do nada surge aquela pessoa enigmática. Rompe a intimidade, o aprisiona num encontro de olhares curiosos. Se põe a sentar.
- E aí, lembra de mim?
- Sei não...
- Tá vendo, o cara não se lembra mais de mim! - Critica amigavelmente. Era um antigo vizinho da infância, num dos bairros em que morou à época. Tenta trazer pela memória. Contudo, dissesse o nome não se recordava... Enveredara na senda do crime. Tráfico. Morte de policiais. Acerto de contas com iguais bandidos. Puxou anos de cadeia. Gostava muito, muitíssimo de mulher. Por isso preza a liberdade. Tem inclusive uma estátua no "criado-mudo".
- Cadeia é você preso numa cela cheia de cão danado. Na secura... Querendo morder o rabo do outro.
Risca-lhe seu pensamento as brincadeiras de moleque repletas de traquinagens, pálida lembrança de inocentes perversidades da turma.
- Tem coisas que a gente não se lembra...
- ...Já pensou se você tivesse me devendo? - O tal ri entre uma nuvem de fumaça de cigarro Free Slims vermelho.
Tem problemas de insônia. Fuma em demasia. A bebida que parece ser sem exagero, serve como paliativo. Apenas um conhaque Domecq e danou a falar com a sobriedade dos embriagados. Do quanto a vida podia ser injusta. Difícil pra quem tem sentimentos. Laços de amizade. O valor de um proceder. E mais recordações que não consegue atinar.
- Você tem vindo sempre aqui...
O outro expressa surpresa no olhar.
- Trabalho na sala de segurança, lá em cima. - Aponta o 2º andar do prédio com vista para a calçada. Faço segurança à paisana. tenho visto pelo monitor do circuito de câmeras.
A conversa perdera o tom agradável.
- Nem acreditei quando reconheci.
- Não sou bom de memória.
Você era um sacana!...
- Faz tanto tempo.
- Vai ver eu sou um cara, que as pessoas pouco reparam... A não ser para tirar um sarro. - Sua fisionomia bastante sinistra intimidava;
Porque houve uma vez, se lembra, daquela inconsequente piada juvenil. Os rapazes brincavam com as espadas. Descobriam-se na sua masculinidade. O flagrante armado desnudou a cena, de contornos picantes na boca da vizinhança. Surras dos pais. Risos, humilhações. Até se esquecerem daquilo tudo.
- Veja, você pode estar se confundindo... Tenta dissuadi-lo.
- Sempre guardei fisionomias... A gente tenta deixar o passado pra trás.
A cerveja pilsen acaba. Esboçou chamar o garçom, sendo interrompido.
- Vamos acertar nossa dívida... Não se preocupe, já paguei tua conta. Agora preciso cobrar. - Deixa entrever dentro da jaqueta seu revólver.
Viu o copo vazio do último gole gelado. Depois mirou a rua, rutilante de constelações das luminárias dos postes, semáforos, luminosos do comércio, numa noite de repente estanque. Sequer almas-vivas...
- Pensa bem no que você vai fazer... - Nada o demove.
Talvez fosse uma travessa que passara algum dia. Forçosamente conduzia-se rumo à escuridão, sob uns manacás floridos. Subjugado num abraço hostil pouca chance teve de agitar-se, até a cutilada profunda de um punhal atingir suas vísceras.
Ao rés da sarjeta, no negrume extenso do asfalto. Do casario que se agiganta surreal. O mundo invertido adentra a retina. Lá adiante um gato pardo furtivo cruza a avenida nas sombras.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

ADORÁVEL MANEQUIM =======

Seu casamento perdera o encanto, confessou ele em uma das sessões iniciais no meu consultório. Até aí nada que causasse estranheza à análise da psicologia. Possibilidade de elaborar um diagnóstico.
A cônjuge dominadora o prendia no lar. Controla seus passos, tenta ler seus pensamentos, quer ver atendida ainda mil exigências e gostos egoístas. Queixava-se ele. Ardentes "tapas na cara" e amargos beijos.
Certa ocasião, dirigindo seu carro à noite pelos lugares da cidade encontrou Sheila. Embaixo dum poste mal iluminado, praticamente no lixo. Desarticulada e esquecida numa sarjeta.. Se sentiu tentado a pegá-la e levou consigo para casa. Muito embora faltasse um braço. Nem por isso deixara de ser bela a Vênus de Milo assim amputada. Providenciou um vestido emprestado da patroa. Ela já tão exposta na vitrine, nua na calçada. Sob o olhar admirado da clientela. Sheila, nome de batismo, como soube, era uma manequim de loja desempregada.
Passaram a conviver tendo a manequim, uma agregada da casa. Ele cuidava pessoalmente de Sheila. Trocava-lhe as roupas, punha lingeries de renda, acessórios femininos: sapatos, bolsas, pulseiras, colares, óculos, perucas, lenços, chapéus. Logo esbanjou a dar as melhores roupas e presentes surpresa, aspergia caros perfumes naquele corpo de plástico cor de pele. Interessou-se por moda fashion para vesti-la bem. Compartilhava posts nas redes sociais ao lado de Sheila, vestida em diferentes figurinos, poses, passeios, eventos.
- Você me completa, Sheila... Vão dizer que fiquei louco. - Revelou tomado num estado hipnótico. - Apaixonara-se por ela, a manequim. A mulher escandalizada sentiu-se traída por Sheila. Parte de um triângulo amoroso inusitado envolvendo o marido e aquela boneca. Um descaramento admitir o amor por outra, não bastasse trazê-la para dentro de casa.
Sheila permanecia disposta pelos cômodos. No sofá, à mesa do jantar. Ouviam música juntos, singles e baladas românticas tragicamente veladas pela esposa enciumada. Justo a manequim, mulher ideal, companheira. Modelo sob medida. Presente nos momentos festivos da residência. Férias na praia.
Quando decidiu a primeira vez passear em público de braços dados com as duas, a esposa ficou fula com semelhante perversão:
- Mas, eu não vou ajudar a carregar essa piranha! O senhor vai se virar sozinho. - E tudo terminava em desencontros. Disputavam mesmo as duas um lugar na frente do carro.
Na companhia de Sheila, ele conseguia abrir o coração.
- Com ela consigo conversar. Sei que me entende, Doutor. Vejo isso nos olhos dela fixos em mim. E nem precisa dizer nada. - Justifica dramático recostado no divã. Sofria estar apartado naquela hora do objeto de seu amor, na ante-sala. Sheila o apoiava.
- Isso que o marmanjo quer, brincar de boneca?... É ela, ou eu!! - Alguém era demais naquele relacionamento. Se a mulher não fosse tão tirana. Trocaria de vez a manequim pra estar com a esposa.
Imaginou que a manequim havia sido moldada num corpo de mulher verdadeiro e nele ficara a essência feminina, ganhando vida nos seus braços. A sós, sentiu-se estranho ao vê-la no banho quente. Seu corpo de plástico, tépido.
- Ah, aqueles mamilos duros!... - Deleitava-se ao mencionar os predicados. - A curva firme do seu traseiro... Sem palavras, Dr.
Uma tarde a mulher flagrou o infiel... Deliciava-se!! Prazer de fazer inveja.
- Eu já vinha desconfiada dessa afeição pela boneca... - Constatava a traição consumada. Tanto lamentou não ter uma máquina fotográfica naquele instante. Livrara-se dum processo por danos morais.
Rejeitou qualquer terapia curativa. A argumentação de necessitar relacionar-se com pessoas de carne e osso. Seria Sheila projeção da esposa que sonhara... Queria se entender. Tanta gente destina seu afeto a um bicho de estimação, que quer bem. Um pop star que jamais vai conhecer além dos posteres, um toy virtual numa tela de computador... Por que não Sheila?
Pediu o divórcio, temia ser acusado de bigamia.