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domingo, 24 de dezembro de 2023

FELIZ NATAL PRA TODOS =====

Fausto Bonavides era um sujeito exemplar. Decente como se costuma dizer. Ia à missa no domingo, abnegado comerciante, julgava-se "homem de bem". Um cidadão sem máculas aparentes. Desse modo conseguiu construir sua fortuna particular, que em ocasiões como esta o deixava cheio de ocupações com as compras. Afinal não poderia esquecer, de forma alguma, os presentes natalinos da família. Uma lembrancinha que fosse!... Até mesmo o cachorro merecia atenção especial. Este ano mais do que nunca. O animal impedira que um gatuno invadisse o quintal da mansão, já vilipendiada pelos impostos e taxas. Fizera jus ao ditado tão popular de que o cão continuava sendo o fiel amigo do homem. Além, é claro, de uma magnífica coleira de prata com nome gravado.
Havia também outros agrados à esposa, tão leal quanto o cachorro. Semelhança esta por vezes perturbadora. No comportamento dela ao receber seus afagos, na maneira que se portava ao vê-lo chegar. Ainda para os filhos, já nem tão fiéis quão a mulher e o bicho.
"Ora, que se podia fazer? Não consigo odiar aqueles desalmados... Quanto mais no Natal!" - Pensou consigo, enquanto verificava o volume de pacotes. Não esquecera ninguém...
Pelos corredores do shopping lá ia ele. Como se a humanidade houvesse dado uma trégua nas mazelas do cotidiano. Sobretudo, naqueles dias... Logo mais iria à igreja ouvir o sermão da missa de Natal e o padre confirmaria este seu sentimento...
"Cristo veio ao mundo trazer boas-novas. Nos ensinar a compaixão, caridade... Palavras do Senhor!" - Aquelas severas admoestações. - "Não acumules para si outros tesouros aqui na terra. Onde a ferrugem corrói e os ladrões roubam! Não ponha sua esperança na riqueza incerta, mas naquele que lhe dá o usufruto..." - Quanta razão havia em suas parábolas... Mas também, difícil de praticar. Mantinha a certeza de que dera o melhor de si. Só depois de saciado o espírito voltaria para casa. Onde todos unidos ceariam festivamente o gordo e suculento peru preparado pela esposa. Pedaços, molhos, bocados digeridos. Embora preferisse não pensar na fome naquele momento, nada de beliscar. No Natal fazia questão de sentar-se à mesa farta.
Enfim era isso. Esta a época para projetar dias melhores. Ele mesmo teve um árduo começo. Quantos natais se passaram até receber seu primeiro presente? E não se pense que ganhou um carrinho. Foi uma gravata! Portanto, muito tempo depois. De lá para cá as bem-aventuranças sucederam-se. A ponto dele atrapalhar a turba nos corredores carregado de presentes. Bem como aumentar sua coleção de gravatas... Aliás, não havia modo de ser pego pela melancolia que alguns insistem em atribuir e que lhes ocorre próximo ao final de mais um ano. Por todos os lados são canções, luzes cintilantes, enfeites coloridos, pessoas entusiasmadas. Há tanta alegria nos lábios que é impossível não crer que a felicidade de fato exista.
"Basta olhar no rosto de cada um. Pode-se não querer sentir a felicidade, enjeitá-la. Mas, que ela existe... Disso não tenho dúvidas!" - Entre descontos e outras promoções, o saldo do contentamento.
- Não é sublime a imagem do menino na manjedoura? Por que será, Deus escolheu fazer nascer seu filho entre os animais? Sem luxo algum... - Disse uma velhinha com ar apiedado, abraçada num maço de lírios campestres. Reparando que Fausto admirava-se em olhar o presépio na vitrine.
- É... Mistério! - Tentativa vã explicar a evidência. - E assim sendo... Nasceu com tão pouco para dar tanto, e nada receber. - Repetiu a comum constatação. Então seguiu de novo equilibrando o monte de caixas. Dali a pouco encontraria a família e juntos desejariam um feliz Natal pra todos. Mais que depressa seria aliviado do peso de tantos embrulhos... Que desse crédito ao genro neste dia. Relevar se a nora implicasse movida pela eterna mesquinhez. Perdoar as dívidas pelos empréstimos. Havia oferta mais preciosa que o tesouro dos nossos corações? Nada estragaria a véspera à espera do Natal. Tão noite feliz. Só de pensar naquele momento sentiu os olhos umidecerem. Seu sacrifício em manter a família reunida compensado...
Do lado de fora no estacionamento parecia mais tranquilo. Ouvia-se apenas uma cantiga natalina vinda do shopping, e ele se preparava para ligar o carro. Junto à janela surgiu um menino. Sujo, os pés descalços. Assustou-se com aquela aparição. Deu com a chave na partida, o motor engasgou... A vida nunca seria exatamente o paraíso! Todos tinham problemas, as pessoas cresciam desordenadas. Fausto estancara atônito. Aqueles olhos compadecidos do garoto em cima dele e o seu profundo silêncio, a dizer mais que mil palavras foram suficientes para lhe constranger a alma...
- Vai pra casa, rapaz... Já é tarde. - Todavia, o moleque permaneceu parado como se não entendesse seu conselho. Desconfiou que o menino estava era atrás de alguns trocados. Por uns instantes êxitou reparando no pivete ali... Imóvel e calado.
"Na certa, é uma esmola que ele quer... Vou dar. Parece tão faminto o infeliz!" - Jesus também dissera aquilo que inspiraria o monsenhor.
"- Vosso ouro e prata estão enferrujadas e a corrosão deles vai servir de testemunho contra vós e devorar vossas carnes, como fogo!... Amai-vos uns aos outros..." - Decidido sacou do bolso uma moeda, que o pirralho agarrou num salto.
- Pegue... Mas não vá gastar com besteira!
Lentamente desviou o carro seguindo para a alameda. Agora se sentia reconfortado. Adiante uma grande árvore enfeitada reluzia... Maior fortuna teria ele, pois era o herdeiro legítimo do reino dos céus.

                                                                                                Natal, 1997.

terça-feira, 2 de maio de 2023

EPÍLOGO MAÇOM ===========

Os raios de sol espargiam envolvendo o quarto por entre a névoa olorosa de mirra e kuphi... Contidos soluços reverberavam no ambiente. Eram as lágrimas de prata da viúva lamentosa, seus arrimos desorientados à sua cabeceira, enquanto ele de olhos arrebatados no inefável inutilmente aguardava socorro.
Nos arredores da clínica ouviu-se o canto longínquo de um galo. O dia encimava na abóbada aclarando sua consciência.
"Deus, meu bem e direito..." - Mais em sua mente que nos lábios repercutia o dístico de um emblema da magna ordem que lhe cimentara a trajetória.
Sabia estar conectado a uma série de aparelhos. Eletrodos ligados ao peito desnudo do lado esquerdo, monitorando seu coração.
O soro gotejava um orvalho pálido... Estranhou que não movimentasse as pernas, apenas o pensamento gravitando no coma. Privado delas como poderia transitar por si mesmo com liberdade? De que valeria inválido, sem poder marchar para transpor o pórtico glorioso do progresso?
"Que valor tem um corpo incompleto, sem os pés?... As passadas incertas." - Ouviu rumores dos que saíam, seguido do arrastar de solas de sapatos. Por qual razão fechavam a porta? Colocaram-no a sós no quarto com suas reflexões. Numa árdua jornada nas profundezas de si mesmo. Deixaram-no batendo à porta da consciência pancadas desordenadas de desespero...
Embora Deus pertencesse a todos tinha seus escolhidos. E da pedra bruta ele se fez. Tosca matéria polida. Peleja da vontade sobre o desejo, pois a semente germina da terra por seu próprio esforço para renascer. Ainda que fosse semeada em solo estéril fincou raiz na rocha e deu frutos.
- Só não é escravo, quem é Senhor! - Para isso teria que estar acima, exercendo o poder. Semelhantes máximas abalavam as fraternidades. Jamais se prostrou a quem quer que fosse. Venerável Senhor do esquadro, compasso e prumo construiu dadivosa fortuna. Invejável cidadão fez correr seu prestígio em redor.
- O querer para si não é o querer para outros... - Sentenciava aos irmãos. Prevaleceu sobre servos e capatazes para se tornar obreiro da verdade... Haverá de almejar a pureza aquilo que é impuro?
Contra seus adversários empunhou o bastão e a espada. A mesma que teve apoiada em seu coração temerário, aguilhão da própria consciência. Foi terrível para os opositores submetendo-os debaixo dos pés. Fez pairar sobre suas cabeças o anátema dos seus propósitos. Imponente como um leão na selva citadina, girando a engrenagem perversa da sociedade.
Assim foi legislador absoluto. Dispensando júbilos ou trevas a si próprio, considerando-se o decretador de suas recompensas e castigos. Seguiu na seara contrária do mundo virado às avessas, edificando templos aos vícios e cavou neles orgulho e ostentação. Emporcalhadas tinha as mãos por terríveis decretos.
Sobremaneira era capaz de vis convencimentos e persuasão. Descobriu que lutar pela boa ou má causa segura era a vitória, desde que desfechasse o derradeiro golpe e neutralizasse o revide. Acobertava seus crimes contra ilustres com razões políticas e passionais. Conforme os deveres para consigo, segundo os excelsos ensinamentos. Sim, sob o golpe aprovador do malhete dos Arquitetos de Hiram, enquanto lhes convinha e alegravam-se. Pois, nenhum báculo opôs entre as serpentes para apaziguá-las de suas contendas. Rompendo o elo da união do tríplice abraço.
Artífice de leviana caridade nas colunas sociais permitiu-se macular pelas nódoas da vaidade tola. Pendeu-se-lhe o vértice da estrela flamígera na alfaia. Fizeram-no ver o cálice transbordante na mensura do mal. Abateu-se sobre ele os tempos catastróficos do mundo profano. Escarneceram os inlutos do destruidor. Tornou-se da ensinança o próprio símbolo...
"Por que me tiram a venda dos olhos?..." - Desvaneceu-se as aparências. Por baixo da pele do rosto vicejava sua caveira descarnada. O espírito onde hospedara-se a doença. Certeza do seu epílogo não muito além. Resto do que é ser uma criatura humana, o esqueleto de cujo corpo a alma inquilina anseia exalar o derradeiro suspiro.
Agora que sua mente tudo testificara, a ampulheta extravasa os últimos grãos. Rompeu-se a fronteira do recinto que lhe acolhia dos perdidos. Que façam a abóboda de aço com as espadas antes de cerrar-se o tampo da esquife. Redimido estava do infortúnio. Não do caruncho do esquecimento, merecido salário.
O opúsculo traz o fétido perfume do definhar da florescência moral. Talvez lhe presenteiem com ramos de acácia... Este dia perdeu-se para ele.
"O berço e a sepultura são, pois, teus limites... Faz o teu testamento e despede-te do mundo dos vivos!" - Parecia uma voz segredar-lhe aos ouvidos a sentença funérea.
Entretanto, tudo isso morre em sagrado sigilo consigo. Donde escapam palavras...
- Gememos! Gememos... Gememos!

                                                                      Maio/2006...